Síndrome de Não me TOC

Yuri D. Amado
Texto apresentado em ocasião das Jornadas da Maiêutica Florianópolis 2012

 

Alguns quadros de enfermidades psíquicas, parecem possuir uma enorme facilidade de penetração no entendimento popular. O Transtorno Obsessivo Compulsivo é um desses exemplos, que passou da definição psiquiátrica consensual no DSM-IV para a “boca do povo” com uma adequação notável. Com facilidade encontramos pessoas dispostas a darem explicações detalhadas sobre o chamado TOC, algumas tão satisfatórias quanto a própria definição do manual, algumas ainda mais interessantes aos ouv

idos, por sua cativante narrativa envolta por dramas pessoais.

Lembrando as palavras de Freud a respeito de que sem haver alguma resistência, é impossível se fazer psicanálise, podemos desconfiar dessa avidez generalizada por saber mais a respeito do tema, e de sua aparente receptibilidade.

Um dos pilares fundamentais de manutenção de nossa sociedade, foi levantado sobre a necessidade da certeza, do confiável, do padronizável. As falhas, enganos, erros, são tidas como objetos a serem superados e esquecidos como qualquer banalidade. Dar valor a estes lapsos como tímidas amostras de verdades ocultas, passou a ser uma tarefa exclusiva dos psicanalistas. E que irônica coincidência a psicanálise demonstra, quando verifica no discurso de um neurótico obsessivo, a necessidade de fuga da verdade do sujeito para a verdade do sintoma. Um aspecto importante da lógica do obsessivo é esquivar-se com habilidade de apresentar-se como sujeito, agarrando-se com todos os esforços em apresentar exclusivamente o sintoma como seu embaixador, um discurso tranqüilizador que desimplica qualquer questionamento a respeito de si próprio e encapsula todos problemas à moda dos contos de fadas, que dizem que se há sofrimento, ele ocorre pela ação de algum personagem maligno, e não por alguma falta de habilidade do herói da estória.

Quanto a esse aspecto, encontramos na obsessão uma parte fundamental do discurso dito normal, ou seja, presente em pessoas que estão dentro das expectativas sociais, no que diz respeito a seu constante esforço em não aceitar como verdadeiro, aquilo que falha, que é sem sentido, mesmo que isso insista em emergir para demonstrar algo que organiza todo o universo daquele sujeito. E seria realmente difícil manter a coerência quando nos deparamos com idéias que assombram o obsessivo, tal como o pensamento de aniquilar um ente querido como um recurso para torná-lo ainda mais importante, reconhecido em seu lugar e amado. Já que essas ideias precisam ser desprezadas para a manutenção de uma postura aceitável para o cotidiano, toda a culpa que resulta de tal pensamento absurdo, permanece como uma assombração de origem misteriosa.

E aí tratamos da principal dificuldade em falar sobre a obsessão: a de falar sem estar ao mesmo tempo fazendo um novo discurso obsessivo, que se esforce em buscar agradar outros ouvidos obsessivos. Falar algo desde fora desse discurso normal que já é obsessivo por si só.

Quando os aparentes efeitos benéficos do discurso do obsessivo tendem a se sobrepor a qualquer organização ilógica, então o obsessivo também deve imaginar estar se vendo livre de um grande inconveniente ao fazer essa opção por seu sintoma. É o que dizem os rituais compulsivos, visto que aparecem como um alívio imediato para uma enorme tensão, a qual não se sabe dizer de quê. E que com exatidão podem ser chamados terapêuticos, por não se preocuparem com a relevância das origens, desde que se consiga um resultado imediato contra o sofrimento. Diante disso, parece surgir um hiato entre o que o paciente quer, e o que seu sintoma dele exige. Uma lacuna que diz respeito aos problemas em que apenas se sente o mal estar, sem poder dar nome a suas razões. Isso que fica como impossível de dar um nome, é o real que mantém-se alheio a qualquer capacidade de racionalização. Para tentar dar uma resposta, advém a obsessão: na tentativa de dar conta do real fazendo uso do simbólico, criando algo compreensível onde só há o indescritível. Nessa busca, o obsessivo traz um mar de idéias, e por que não, de comportamentos, que constroem um abismo imaginário que tenta engolir toda natureza deste real inominável. Toda esta intenção estaria em perfeito acordo com o benefício de seu realizador, se aquilo que acaba sendo tragado por essa boca insaciável, não fosse também o sujeito, que se precipita nesse abismo construído pela sua própria palavra, e que mantida em uma incessante repetição, torna possível exibir a todos essa palavra transformada em sintoma, mas o real do sujeito tragado para dentro do abismo, este preserva-se de ser tocado. É assim que chegam os obsessivos aos consultórios: ausentes. Vêm apenas os sintomas como seus representantes. Quando há referências a um “eu”, tratam apenas como uma invocação da idéia, não de um sujeito ativo para cada enunciação, e sim um puro objeto alvo de obrigações, culpa, e insultos.

Mas se quisermos apontar com precisão o TOC a que se referem os psicólogos, sendo fiéis aos manuais psiquiátricos, deve-se buscar sua coincidência com uma classe de sintomas e não alguma qualidade psíquica estrutural. Obviamente poderemos trilhar sua constituição a partir de qualquer estrutura neurótica, de forma alguma sendo necessária sua coincidência com uma neurose obsessiva. Pois afinal, podemos sempre chegar a resultados similares, partindo de causas diferentes. Isso abre ainda mais considerações possíveis a respeito do “TOCado”.

Um dos traços mais característicos da lógica do obsessivo, é a articulação da lógica do “ter”. Talvez os aparecimentos suficientemente explícitos em expressões comuns, onde “ter” se refere a um pênis, em: “Meninos têm pipi e meninas não têm” ou “O meu é maior”, sejam exemplos dessa lógica que trata o pênis como um excesso, posto que primeiro se concebe que o menino já é sujeito da frase, para então considerar que ele tenha alguma coisa a mais do que seu simples ser. Essa presença indissociável do corpo, certamente serve como um prático argumento para a manutenção da neurose obsessiva nos homens, se quisermos buscar uma maneira de justificar a maior participação estatística do sexo masculino na estrutura obsessiva. E exatamente por se ancorar em uma realidade irredutível, (a diferença sexual física) é que se tratará de uma luta interminável e sem sucesso.

A mulher, em contrapartida, poderá com mais facilidade sustentar sua neurose na lógica histérica do “ser”, pois teria uma facilitação a mais para não se iludir com uma idéia obsessiva de “ter” algo a mais, e verifica que os homens são na verdade, tão sujeitos à castração quanto ela, possuem a mesma falta em serem humanamente incompletos. É baseado nessa lógica da histérica que um tipo especial de ritual compulsivo muito pesquisado pelos psicólogos pode se apoiar: a compulsão por compras. Diferentemente da possível correlata nos obsessivos, que comprariam bens com os quais não se confundem, mas que evidenciam suas posses, e que tendem a demonstrar sua potência (carros, casas), a histérica compra aquilo que pode revestir a ela própria desse falo, exaltando a própria falta e transformando-a na demonstração de seu poder, cobrindo-se de roupas, jóias, sapatos, itens que mostram-na sendo poderosa, gostosa, e outros adjetivos exibem nesta passarela, como ela é exuberante.

E efetivamente as ostentações dessa falta imaginária, tornam-se os próprios métodos de sedução com as quais se maravilham os obsessivos. Onde haveria frase que deixasse mais clara a dependência em relação ao outro como meta de completude, do que em “Você não sabe a falta que você me faz!”? Ou o fascínio subliminar que as mulheres exercem ao se mostrarem cheias de pulseiras, brincos, comumente em forma de aros, símbolo máximo para o vazio.

Quando Lacan rompe definitivamente com as propostas de institucionalização da psicanálise cobradas pela IPA, dá ênfase, entre outros pontos, à idéia de cura que esta apresentava, ao presumir que em uma situação de análise, o que estava em jogo era uma relação entre duas pessoas. Resultado disso, era que desta relação portanto, nada mais poderia resultar, que a comunicação de um Ego para outro menos preparado para lidar com a realidade. Desta feita, o tratamento teria a propriedade de se solidificar como prumo sobre o desejo do sujeito.


Mas a própria idéia da possibilidade de apontar um tal analista de ego saudável, sempre se demonstrou tão incompatível com aquilo que Freud transmitia em toda sua proposta, que o explicita diretamente em “Análise terminável ou interminável”, onde cita: “um ego normal dessa espécie é, como a normalidade em geral: uma ficção ideal”. Ainda assim, essa foi a visão sustentada pela deformação da psicanálise ocorrida na Inglaterra, com a "Ego-Psychology", onde a proposta dos "psicólogos do ego" era a de uma terapia voltada a fortalecer o Ego do paciente através de uma aliança com o ego saudável do psicoterapeuta.


Lacan ilustra tal problema com o caso de um paciente tratado por Ernst Kris, que se queixava de produzir muitos trabalhos científicos, sem no entanto conseguir publicá-los, pela convicção de tratarem-se de plágios. Kris acaba por encontrar uma prova da realidade, que torna incontestável que se tratavam todos de trabalhos originais, de que não repetiam pesquisas anteriores. Segundo Kris, estaria então a chave de sua cura, em esclarecer um sistema de defesa no qual o paciente encena o plágio para garantir que não plageia de verdade. Ao ser comunicado pelo analista, de tal descoberta factualmente incontestável, o gozo implicado na condição de plageador, replica e faz-se aparecer traduzido em um ato do paciente, que relata que haviam já algumas sessões, que após sair delas, buscava sempre encontrar um restaurante que servisse cérebros frescos, prato que se tornara naqueles dias, iguaria única para satisfazer sua predileção.

No caso apresentado por Ernst Kris, como avalia Lacan: “não é o fato de seu paciente não roubar que importa aqui; é que ele rouba nada”, e insiste em demonstrar isso ao analista, que surdamente se
atém à obstinação de expor a cura ao seu paciente em um modelo que trata a palavra apenas como meio para comunicar uma forma apropriada de tratar a realidade. Uma falta de escuta fatal sobre o pedido de ajuda enunciado com insistência pelo analisante, que conta a seu analista: “Mas diferentemente do que me dizes, eis as provas de que sigo sendo um devorador de mentes alheias”.

Essa noção da necessidade de se delimitar com exatidão o sintoma para que ele possa ser tratado com máxima eficiência, é a proposta em questão de todo tratamento de sofrimentos psíquicos
baseados na ciência. Para estes, nada poderia ser mais proveitoso que recobrar a saúde do paciente, através de um terapeuta que saiba incidir com exatidão sobre o sintoma a ser arrancado do paciente.

Uma proposta tão clara em suas intenções de propiciar o máximo bem-estar com o mínimo de incômodo à vida do paciente, não poderia ser recebida de outra forma senão com as maiores hospitalidades. Eis razão suficiente para estar tão bem disseminada em tratamentos oferecidos aos mais diversos incômodos. E numa delas em especial, parece ficar extravagantemente destacada: No tratamento das dependências químicas, onde uma equação pôde apontar, com convencimento da própria veracidade, para a relação de uso da droga com doença, e absenteísmo com saúde.

Tal equação já expressa em primeira instância, que o sofrimento está isolado fora de qualquer subjetividade. É trazida uma boa nova de que se conseguiu compreendê-lo de maneira tão bem edificada quanto a estrutura molecular do princípio ativo no qual se atomicizou o desejo.
Chegou-se a uma explanação tornada possível graças a anos de pesquisas sérias, culminando num discurso elaborado pelos mais diligentes homens de ciência, que garante a prerrogativa da total
desimplicação subjetiva aos que se reconheçam como sofredores destes males. O problema não está no paciente, que é uma pessoa maravilhosa, com potenciais fantásticos de realização, mas foi subjugado à uma droga que toma conta de qualquer possibilidade de reação, em um vilanesco seqüestro de seu ser.

Em segundo lugar, legitima uma verdade salvacional que reside na aceitação do discurso de um Outro, que graças a seu acesso a uma verdade irredutível, possui a fórmula para o fim do seu sofrimento,
exigindo em troca, o reconhecimento da posição de seu conhecimento redentor. Aqui há um ponto no qual um discurso científico acaba por atuar desde o mesmo posto de fé em um discurso divino. E não é à tôa que por aí se perfaz um cenário fecundo à captação de fiéis, em qualquer conotação da palavra, que ouvem-no da forma exata pela qual essa afirmação os coloca na posição de ouvintes, algo como: “Se aceitas essa verdade, te encontrarás com um amor tão completo sobre ti, que nele, estarás redimido de toda falta de amor cometida em teu passado”.

Um espaço no qual este enredo pode se perfazer com comodidade, são os centros de tratamento de dependência química, espaços nos quais, para a desfortuna dos que ali são internados, o menor golpe narcísico é violentamente rechaçado por seu evidente propósito descentrado frente aos objetivos postos em estandarte nestes meios. Como não poderia deixar de ser, a vanidade possibilitada dentro
deste contexto, salta aos olhos de qualquer um que não tenha bons motivos para manter-se cego a ela. Como um funcionário destas comunidades me comenta certa vez: “Conhece os homens-urso? Pois aí estão eles. Passam meses aqui dentro hibernando, para depois do inverno voltarem para a exata mesma vida que tinham antes”. Com certeza, um sono alheio às tensões que se produziam num mundo real, em um leito preparado, no qual certamente, também muito podia se sonhar. Tudo isso como único recurso pelo qual ainda se agarra alguém que, sem saber o que diz, ainda aponta: “Vocês erraram o alvo”.

Há nessa esquiva das possibilidades de intervenções relativas às questões constitutivas do sujeito, um ótimo argumento lógico, pois a busca incansável pela droga como maneira de tapar a hiância sobre a qual está ele próprio formado, encontra aqui uma reedição oferecida pelas
mãos das pessoas mais bem intencionadas. É de veras persuasivo atender ao chamado de um conhecimento que expõe de um jeito tão preciso e acurado, o sintoma contra o qual faz frente. Entretanto, um tratamento com alguma chance de benefício, não pode ter como finalidade tapar esta hiância de onde não cessa de brotar mais alimento para as inquietações, mas possibilitar expô-la, exprimindo-a pelas vias da sublimação, de forma tal que isso possa ser tomado como parte de uma estruturaração do real encontro do sujeito com seu desejo.

Se é que o caso há pouco comentado de Ernst Kris, sobre um paciente que “roubava nada”, ainda pôde por algum leitor ser contemplado com confusão a respeito de qual seria, afinal, o problema de um furto assim fantasioso, um roubo sem objeto de delito, talvez não haja melhor exemplo do que a triste figura daqueles que se tornaram ex-viciados para sempre. Que precisam um dia após o outro, fazer toda sua vida orbitar sobre a prova de que são usuários de nada, e dedicar pensamentos diários a justificar que não cometeram o crime de consumir a droga. Tornam-se dependentes ativos de continuar todos os dias não fazendo uso da droga que um dia evidenciou a sua degradação. Convicção que se erige tão heróica, que transforma seu protagonista em um símbolo do sucesso naquele caminho, um garoto propaganda que trabalha voluntariamente.
Ao que parece, porque já recebe nesta função, um pagamento que lhe vale onde nenhum dinheiro teria valor.

O sentido do sintoma transformado num alvo preciso da proposta médica adquire legitimamente os sinônimos não apenas de acurado, como também necessário. Torna-se não só um objeto preciso como alvo da intervenção médica, como também objeto sobre o qual é preciso se
apegar como a expressão máxima da condição do sujeito, sendo ambas traduções de uma legitimação da condição gozante do paciente, que é com isso elevada a um patamar de nobreza, numa posição ideal para se realimentar de sua própria exibição.

Mas a formação do sintoma por si só, já trata-se exatamente de uma interpretação sobre o que é o sujeito, e que sustenta-se com suficiente fixidez para receber o atestado de ser correta. Como seria
possível que um tratamento implicasse a superação do sintoma, quando o próprio tratamento tem como propósito, sustentar uma fixidez tão imperativa quanto a coisa que propõe extirpar.

Isso demonstra o quanto o sintoma na ciência, de forma alguma se propõe a coincidir com o sintoma de que fala a psicanálise. E mesmo entre analistas, há uma tentação em fazer psicologia com a qual devem se haver, em decorrêcia do próprio fato de sua presença necessitar de um eu que a viabiliza. À miúde se toma como uma interpretação bem sucedida, aquela que é bem recebida pela aprovação do paciente. Tal situação atende, sem dúvida, ao apego a um relacionamento dual estabelecido entre analista e analisante, pondo sobre a mesa, o jogo de sedução ao qual se dedica esta relação, desconsiderando uma presuposição básica na direção da cura conforme pensa a psicanálise, o de colocar em questão o encontro com a subordinação do sujeito pelo significante.

Se há alguma função que possa ser apontada dizendo respeito a de quê depende um dependente químico, não há por que tentar buscála alhures, quando já está dada com todas as letras. Uma vez que invariavelmente nos toca a cara que aquilo de que depende continua a ser evocado mesmo na ausência do objeto da realidade, resta apenas o significante no qual o inacessível pode estar representado. E se faz necessária sua invocação por ser esta a única forma de trazer um sujeito à sua condição de existente. Eis uma maneira de pensamento que parece haver se tornado imperativa entre nós, já quando Newton formulava a necessidade de relação para que a queda das maçãs pudesse existir. Por que não há uma possível significação do sujeito que não remeta a outra significação.