(A cura do sintoma) - Notas sobre o tratamento da dependência química
Yuri D. Amado
Texto apresentado em ocasião das Jornadas da Maiêutica Florianópolis 2013
Quando Lacan rompe definitivamente com as propostas de institucionalização da psicanálise cobradas pela IPA (International Psychoanalytical Association), dá ênfase, entre outros pontos, à idéia de cura que esta apresentava, ao presumir que em uma situação de análise, o que estava em jogo era uma relação entre duas pessoas. Resultado disso, er
a que desta relação portanto, nada mais poderia resultar, que a comunicação de um Ego para outro menos preparado para lidar com a realidade. Desta feita, o tratamento teria a propriedade de se solidificar como prumo sobre o desejo do sujeito.
Mas a própria idéia da possibilidade de apontar um tal analista de ego saudável, sempre se demonstrou tão incompatível com aquilo que Freud transmitia em toda sua proposta, que o explicita diretamente em “Análise terminável ou interminável”, onde cita: “um ego normal dessa espécie é, como a normalidade em geral: uma ficção ideal”. Ainda assim, essa foi a visão sustentada pela deformação da psicanálise ocorrida na Inglaterra, com a "Ego-Psychology", onde a proposta dos "psicólogos do ego" era a de uma terapia voltada a fortalecer o Ego do paciente através de uma aliança com o ego saudável do psicoterapeuta.
Lacan ilustra tal problema com o caso de um paciente tratado por Ernst Kris, que se queixava de produzir muitos trabalhos científicos, sem no entanto conseguir publicá-los, pela convicção de tratarem-se de plágios. Kris acaba por encontrar uma prova da realidade, que torna incontestável que se tratavam todos de trabalhos originais, de que não repetiam pesquisas anteriores. Segundo Kris, estaria então a chave de sua cura, em esclarecer um sistema de defesa no qual o paciente encena o plágio para garantir que não plageia de verdade. Ao ser comunicado pelo analista, de tal descoberta factualmente incontestável, o gozo implicado na condição de plageador, replica e faz-se aparecer traduzido em um ato do paciente, que relata que haviam já algumas sessões, que após sair delas, buscava sempre encontrar um restaurante que servisse cérebros frescos, prato que se tornara naqueles dias, iguaria única para satisfazer sua predileção.
Quando Ernst Kris apresenta o caso de um paciente que vive grande angústia ao considerar-se um mero plagiador de artigos científicos, o terapeuta se esforça em mostrar o quanto seus trabalhos são certamente originais, contrariando a afirmação do paciente que se afirmava um trapaceiro. Mas como avalia Lacan: “não é o fato de seu paciente não roubar que importa aqui; é que ele rouba o objeto NADA”, e que o paciente insiste em demonstrar isso ao analista, que surdamente se atém à obstinação de expor a cura ao seu paciente em um modelo que trata a palavra apenas como meio para comunicar uma forma apropriada de tratar a realidade. Uma falta de escuta fatal sobre o pedido de ajuda enunciado com insistência pelo analisante, que conta a seu analista: “Mas diferentemente do que me dizes (que não sou um plageador), eis as provas de que sigo sendo um devorador de mentes alheias: ”, e impelido por uma força inconsciente, o paciente conta que sempre que sai das sessões de análise, vai a algum restaurante parisiense no qual se sirva Tête de Boeuf, o tradicional prato francês preparado com o cérebro de bovino, que é usado como significante e prova do crime de ser um suga-mentes, tal como tentava dizer a seu analista.
Essa noção da necessidade de se delimitar com exatidão o sintoma para que ele possa ser tratado com máxima eficiência, é a proposta em questão de todo tratamento de sofrimentos psíquicosbaseados na ciência. Para estes, nada poderia ser mais proveitoso que recobrar a saúde do paciente, através de um terapeuta que saiba incidir com exatidão sobre o sintoma a ser arrancado do paciente.
Uma proposta tão clara em suas intenções de propiciar o máximo bem-estar com o mínimo de incômodo à vida do paciente, não poderia ser recebida de outra forma senão com as maiores hospitalidades. Eis razão suficiente para estar tão bem disseminada em tratamentos oferecidos aos mais diversos incômodos. E numa delas em especial, parece ficar extravagantemente destacada: No tratamento das dependências químicas, onde uma equação pôde apontar, com convencimento da própria veracidade, para a relação de uso da droga com doença, e absenteísmo com saúde.
Tal equação já expressa em primeira instância, que o sofrimento está isolado fora de qualquer subjetividade. É trazida uma boa nova de que se conseguiu compreendê-lo de maneira tão bem edificada quanto a estrutura molecular do princípio ativo no qual se atomicizou o desejo.
Chegou-se a uma explanação tornada possível graças a anos de pesquisas sérias, culminando num discurso elaborado pelos mais diligentes homens de ciência, que garante a prerrogativa da total desimplicação subjetiva aos que se reconheçam como sofredores destes males. O problema não está no paciente, que é uma pessoa maravilhosa, com potenciais fantásticos de realização, mas foi subjugado à uma droga que toma conta de qualquer possibilidade de reação, em um vilanesco seqüestro de seu ser.
Em segundo lugar, legitima uma verdade salvacional que reside na aceitação do discurso de um Outro, que graças a seu acesso a uma verdade irredutível, possui a fórmula para o fim do seu sofrimento, exigindo em troca, o reconhecimento da posição de seu conhecimento redentor. Aqui há um ponto no qual um discurso científico acaba por atuar desde o mesmo posto de fé em um discurso divino. E não é à tôa que por aí se perfaz um cenário fecundo à captação de fiéis, em qualquer conotação da palavra, que ouvem-no da forma exata pela qual essa afirmação os coloca na posição de ouvintes, algo como: “Se aceitas essa verdade, te encontrarás com um amor tão completo sobre ti, que nele, estarás redimido de toda falta de amor cometida em teu passado”.
Um espaço no qual este enredo pode se perfazer com comodidade, são os centros de tratamento de dependência química, espaços nos quais, para a desfortuna dos que ali são internados, o menor golpe narcísico é violentamente rechaçado por seu evidente propósito descentrado frente aos objetivos postos em estandarte nestes meios. Como não poderia deixar de ser, a vanidade possibilitada dentro deste contexto, salta aos olhos de qualquer um que não tenha bons motivos para manter-se cego a ela. Como um funcionário destas comunidades me comenta certa vez: “Conhece os homens-urso? Pois aí estão eles. Passam meses aqui dentro hibernando, para depois do inverno voltarem para a exata mesma vida que tinham antes”. Com certeza, um sono alheio às tensões que se produziam num mundo real, em um leito preparado, no qual certamente, também muito podia se sonhar. Tudo isso como único recurso pelo qual ainda se agarra alguém que, sem saber o que diz, ainda aponta: “Vocês erraram o alvo”.
Há nessa esquiva das possibilidades de intervenções relativas às questões constitutivas do sujeito, um ótimo argumento lógico, pois a busca incansável pela droga como maneira de tapar a hiância sobre a qual está ele próprio formado, encontra aqui uma reedição oferecida pelas mãos das pessoas mais bem intencionadas. É de veras persuasivo atender ao chamado de um conhecimento que expõe de um jeito tão preciso e acurado, o sintoma contra o qual faz frente. Entretanto, um tratamento com alguma chance de benefício, não pode ter como finalidade tapar esta hiância de onde não cessa de brotar mais alimento para as inquietações, mas possibilitar expô-la, exprimindo-a pelas vias da sublimação, de forma tal que isso possa ser tomado como parte de uma estruturaração do real encontro do sujeito com seu desejo.
Se é que o caso há pouco comentado de Ernst Kris, sobre um paciente que “roubava nada”, ainda pôde por algum leitor ser contemplado com confusão a respeito de qual seria, afinal, o problema de um furto assim fantasioso, um roubo sem objeto de delito, talvez não haja melhor exemplo do que a triste figura daqueles que se tornaram ex-viciados para sempre. Que precisam um dia após o outro, fazer toda sua vida orbitar sobre a prova de que são usuários de nada, e dedicar pensamentos diários a justificar que não cometeram o crime de consumir a droga. Tornam-se dependentes ativos de continuar todos os dias não fazendo uso da droga que um dia evidenciou a sua degradação. Convicção que se erige tão heróica, que transforma seu protagonista em um símbolo do sucesso naquele caminho, um garoto propaganda que trabalha voluntariamente.
Ao que parece, porque já recebe nesta função, um pagamento que lhe vale onde nenhum dinheiro teria valor.
O sentido do sintoma transformado num alvo preciso da proposta médica adquire legitimamente os sinônimos não apenas de acurado, como também necessário. Torna-se não só um objeto preciso como alvo da intervenção médica, como também objeto sobre o qual é preciso se apegar como a expressão máxima da condição do sujeito, sendo ambas traduções de uma legitimação da condição gozante do paciente, que é com isso elevada a um patamar de nobreza, numa posição ideal para se realimentar de sua própria exibição.
Mas a formação do sintoma por si só, já trata-se exatamente de uma interpretação sobre o que é o sujeito, e que sustenta-se com suficiente fixidez para receber o atestado de ser correta. Como seria possível que um tratamento implicasse a superação do sintoma, quando o próprio tratamento tem como propósito, sustentar uma fixidez tão imperativa quanto a coisa que propõe extirpar.
Isso demonstra o quanto o sintoma na ciência, de forma alguma se propõe a coincidir com o sintoma de que fala a psicanálise. E mesmo entre analistas, há uma tentação em fazer psicologia com a qual devem se haver, em decorrêcia do próprio fato de sua presença necessitar de um eu que a viabiliza. À miúde se toma como uma interpretação bem sucedida, aquela que é bem recebida pela aprovação do paciente. Tal situação atende, sem dúvida, ao apego a um relacionamento dual estabelecido entre analista e analisante, pondo sobre a mesa, o jogo de sedução ao qual se dedica esta relação, desconsiderando uma presuposição básica na direção da cura conforme pensa a psicanálise, o de colocar em questão o encontro com a subordinação do sujeito pelo significante.
Se há alguma função que possa ser apontada dizendo respeito a de quê depende um dependente químico, não há por que tentar buscála alhures, quando já está dada com todas as letras. Uma vez que invariavelmente nos toca a cara que aquilo de que depende continua a ser evocado mesmo na ausência do objeto da realidade, resta apenas o significante no qual o inacessível pode estar representado. E se faz necessária sua invocação por ser esta a única forma de trazer um sujeito à sua condição de existente. Eis uma maneira de pensamento que parece haver se tornado imperativa entre nós, já quando Newton formulava a necessidade de relação para que a queda das maçãs pudesse existir. Por que não há uma possível significação do sujeito que não remeta a outra significação.